Aqui no meu quarto tenho alguns pôsteres, mas quero falar de dois.
Um fica colado na porta, perto da mesinha onde eu tenho passado a maior parte do tempo nessa quarentena.
É um pôster do filme Kick Ass, onde o personagem está com sua fantasia verde apontando o dedo para quem o olha, sob uma frase em inglês escrito “I Want You To Kick Ass! Become a super hero today”. Em uma tradução de acordo com o Google: “Eu quero que você chute o traseiro! Torne-se um super-herói hoje”.
O que hoje chamam de frase motivacional.
Lembro de ter comprado o pôster na Galeria do Rock, em São Paulo, há alguns anos atrás, mas faz um bom tempo.
O outro pôster não sei onde está.
Mas eu lembro dele.
Ele estava colado na parede, embaixo da prateleira que tem umas revistas em quadrinhos, ao lado de um espelho meio quebrado.
Caiu faz umas semanas, olho pelo quarto e não sei onde eu o coloquei.
A imagem desenhada é da exposição do artista plástico australiano Ron Mueck, que trabalha com esculturas hiper realistas. Daquelas que você fica com medo achando que vai se mover e tem vontade de tocar para desfazer a artimanha.
O pôster foi adquirido na exposição da Pinacoteca de São Paulo, em 2014.
Ele já tinha caído algumas vezes e eu rapidamente pegava e colocava ele de volta.
Antes, ele ficava no corredor, fora do meu quarto, do lado da porta, também na parede.
A figura que ilustra o cartaz é a de um homem num barco, fotografado apenas do dorso para cima, o resto do corpo dentro do barco. O seu olhar é de fixação para quem está do lado esquerdo dele.
É uma daquelas obras que se olhar demais, você se sente absorvido e assombrado, tal como aquela coisa da Mona Lisa.
Mas não sei se esse efeito recai sobre mim como antigamente. O canto em que ele fica é onde eu, de vez em quando, tiro selfies para saber como “estou na imagem” — o que não faz sentido já que perto dele tem um espelho, né? (acho que Walter Benjamin já falou algo sobre isso)
E sempre que isso acontecia, eu o encarava por meio segundo. Nesse meio segundo, as memórias da exposição chegavam em mim e sumiam. E o significado dele no meio disso tudo.
É coisa de artista, culto, chique, intelectual.
Mas, o mais curioso, e é o ponto que me fez chegar nessa reflexão egoísta ou viajada, é que o pôster do Kick Ass é raramente olhado por mim. Talvez porque hoje eu não gosto tanto de histórias de quadrinhos de super heróis como antes, né? Uns até poderiam dizer que estou mais para o “Mueck” do que para um [insira aqui qualquer editora que tenha como foco histórias de super heróis].
Não é nem nada tão pensado, politicamente assim (mas tudo é político), planejado, é só que a gente muda os gostos, né? E eu entendo que Kick Ass tem todo um refinamento por ser algo mais maduro, outra vibe, e eu não pensaria duas vezes se visse o quadrinho por um preço bem barato.
Mas eu já estou fugindo do assunto e você perdendo a paciência. Eu ia falar que o ponto principal da imagem é que ela está apontando e falando com quem o enxerga, eu comprei pensando nisso, então, será que ela perdeu sua função que, possivelmente, o artista deu para a obra, e eu também concordei no pacto? Ela não deveria me motivar, me fazer lembrar do personagem? Fazer eu olhar, atravessar a porta e seguir em frente revigorado pronto para “chutar umas bundas”?
Me distraí e acabei focando com o que estava atrás do pôster. A porta. Mais especificamente, a fechadura. É só lá que eu olho, para sair do quarto e fazer alguma tarefa cotidiana.
E eu me distraí também chegando nessa reflexão, como vocês devem ter percebido.
Aliás, o momento do “insight” foi enquanto eu fazia uma atividade cotidiana, no meu quarto e me peguei distraído. Eu estava em conflito, assistindo a um filme longo (2 horas), brasileiro, contemporâneo, e que mesmo assim, eu batalhava para entender o que estavam dizendo em algumas cenas, o que me fazia voltar e demorar ainda mais para terminar a experiência. O filme se chama Os Sonâmbulos e eu até cheguei a pausar para dar um cochilo. Era óbvio, resolvi assistir naquela posição “deitado sentado na cama” com o notebook no colo.
E dali enxerguei o pôster e pincelei um pouco dessa ideia.
Tá. E o quê tem a ver o Ron Mueck com tudo isso?
Eu sei, eu demoro para chegar nas coisas.
A questão é que, faz alguns meses, tenho me enxergado como uma pessoa mais “intelectual” e também sensível nesse meio. Esse negócio de “intelectual” dá uma sensação meio esnobe que eu não gosto, mas não consigo encontrar outra palavra. É a vontade de ler filosofia, ler coisas mais “cabeçudas”…Vem tudo do estudo sobre cinema e crítica.
E é isso que o Ron Mueck parece pulsar também. Um certo olhar que exige uma contemplação, interação com uma obra que está perto, mas também distante. E para que eu puxe cada vez mais a atenção para esse momento, seria necessário mais estudo.
Mas eu o perdi.
Perdi a obra? O olhar? Não sei.
Preciso chutar bundas. Virar um super herói.
Não sei se preciso. Mas parece que é isso que é preciso hoje em dia, né?
E é interessante tentar trazer essas duas imagens para perto uma da outra, quebrando um pouco da dicotomia entre um suposto erudito x popular.
Esses dois, o personagem criado pelo Mark Millar e a escultura criada pelo Ron Mueck teriam uma conversa extremamente difícil. Ambos parecem pedir por algo ativo, mas operam por outro regime. Olhar x gesto.
Se eu fosse um realizador, essa ideia não seria tão apreciada. Ia ser um puta contraste, ninguém ia entender o cenário nem o personagem (não que os filmes ou um personagem devam ser entendidos, e nesse sentido, seria legal deixar as pessoas com uma interrogação na cabeça).
Já imaginou? Em que lugar essas duas imagens privilegiadas poderiam existir lado a lado. Tem aqui ó. Poá, Zona Leste, Grande São Paulo.
Acho que é uma coisa que eu deveria me achar, né? É pra poucos.
E eu acho que estou me perdendo nos dois.
Essas coisas estão em conflito e eu tenho tentado buscar algum meio termo.
Parece até algum pedido, mas eu sigo seguindo. Não tem o que fazer.
Colocar isso em palavras é extremamente difícil, apesar de eu ter achado que desenvolvi bem.
Minhas paranoias estão dizendo que alguém vai enxergar isso como algo de “menor propriedade” (uma pandemia e ele escrevendo esse texto?), vão achar legal por ter conseguido extrair tudo isso de alguma forma, vão achar alguns erros, vão curtir, não vão nem ler.
Já eu, nem sei o que é isso.
Nem queria e surgiu.
Talvez seja isso que eu preciso, só fazer surgir.
Difícil.
Egberto Santana é Paciente da nossa Psicóloga parceira Nathália Mello!
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